A encruzilhada dos padrões privados no Acordo SPS

Este artigo de Rodrigo C.A. Lima, diretor geral da Agroicone, analisa o estágio atual e os limites da discussão sobre padrões privados na OMC, com vistas a evidenciar a dificuldade da Organização em tratar dessa agenda.

Na reunião do Comitê do Acordo sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS, sigla em inglês) da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em março de 2015, os membros chegaram a um impasse sobre o conceito de padrões privados relacionados a medidas sanitárias e fitossanitárias (padrões privados-SPS).

Desde 2005, o tema entrou para a agenda do Comitê, com base na preocupação levantada por São Vicente e Granadinas a respeito de padrões privados aplicados sobre bananas exportadas para o Reino Unido (EurepGAP, hoje conhecidos como GlobalGAP).

A criação de um Grupo de Trabalho Ad Hoc para tratar de padrões privados-SPS, em 2008, abriu espaço para as discussões que envolvem preocupações como:

i) o conceito de padrões privados-SPS;

ii) a inclusão de questões sociais e ambientais nos padrões privados;

iii) o tratamento, pela OMC, de um eventual caso levado ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), considerando que, por serem privados, tais padrões não têm relação com as regras criadas pelos membros da Organização;

iv) como assegurar que os padrões sejam fundamentados em evidências científicas;

v) o potencial de criar barreiras injustificadas e/ou restrições disfarçadas ao comércio; e

vi) custos para cumprir com os padrões.

Em síntese, preocupações sobre a legitimidade e a responsabilidade pela criação dos padrões são questões centrais que permeiam essa agenda[1].

No entanto, dez anos após o início das discussões sobre padrões privados-SPS, os membros da OMC ainda não lograram chegar a um consenso sobre o conceito dessas medidas. Em paralelo, a velocidade com que os padrões são criados e aplicados no comércio internacional é crescente, com um escopo que vai muito além da proteção da vida e saúde humana, animal e vegetal.

De que tratam as negociações do Comitê?

A Decisão G/SPS/55, adotada em março de 2011, prevê 5 ações relacionadas ao tema, com destaque para a necessidade de que o Comitê desenvolva uma “definição operacional de padrões privados relacionados a medidas SPS”.

Essa discussão tem ocorrido no âmbito do Comitê desde outubro de 2011. Após sucessivas tentativas de definição conceitual, foi criado, em outubro de 2013, um e-Working Group (e-WG), com o propósito de alcançar um consenso sobre esse ponto. Integram o e-WG Argentina, Austrália, Belize, Brasil, Burkina Faso, Canadá, China, Cingapura, Estados Unidos, Japão e União Europeia (UE), coordenados por China e Nova Zelândia.

O trabalho do e-WG baseou-se na proposta de definição conceitual apresentada pelos coordenadores(G/SPS/W/272), segundo a qual “Um padrão privado relacionado a medidas SPS é um requerimento escrito ou um conjunto de requerimentos escritos por uma entidade não governamental, relacionado à segurança alimentar, à vida animal ou vegetal ou à saúde, com vistas ao uso comum e repetitivo” (grifo do autor).

Na nota de rodapé, especifica-se que “Essa definição operacional ou qualquer parte dela deve ser empregada sem prejuízo aos direitos e às obrigações dos membros sob o Acordo da OMC sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias”[2]. É interessante ressaltar que o rodapé proposto visa a resguardar os membros quanto à futura interpretação legal do conceito – o que, em princípio, significa que a definição não deve servir como base para interpretar o cumprimento ou não do Acordo pelos membros.

No entanto, não faria sentido o Comitê negociar um tema ligado à implementação do Acordo ou de conceitos relevantes para as obrigações, se não visa ao aprimoramento das regras do Acordo. O Parágrafo 1 do documento G/SPS/1 estabelece que “O Comitê deve realizar reuniões a fim de executar as funções necessárias à implementação das provisões do Acordo, ou as tarefas que possam se fazer necessárias para lidar com elas”.

Além do debate sobre os aspectos jurídico-procedimentais do conceito de padrões privados relacionados a medidas SPS, é essencial destacar as discussões sobre a incorporação dos termos “entidade não governamental” à referida definição. Para os coordenadores, o termo é genérico e foi utilizado pela Decisão G/SPS/55 do Comitê.

No encontro do Comitê de outubro de 2014, o conceito-base para as discussões foi praticamente o mesmo: “Um padrão privado relacionado a medidas SPS é um requerimento ou condição escrita, ou um conjunto de requerimentos ou condições escritas, relacionado à segurança alimentar, à vida animal ou vegetal ou à saúde, que possa ser utilizado em transações comerciais e aplicado por uma entidade não governamental que não esteja exercendo autoridade governamental” (grifo do autor). A essa definição, acrescentou-se uma ressalva opcional, em nota de rodapé: “Essa definição operacional não deve gerar prejuízo aos direitos e às obrigações dos membros ou à visão dos membros sobre o escopo do Acordo da OMC sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias”.

A UE e os Estados Unidos foram contrários às expressões “entidade não governamental” e “requerimento”. A UE sugeriu trocar a primeira por “órgão privado” e remover o termo “requerimento”. Austrália e Japão afirmaram-se flexíveis quanto à proposta dos coordenadores do e-WG ou da UE. Brasil, Argentina, Belize e China foram enfáticos ao defenderem a manutenção de “entidade não governamental”[3].

A falta de consenso a respeito dessa expressão está relacionada ao Artigo 13 do Acordo SPS, segundo o qual os membros devem ser plenamente responsáveis pela observância das obrigações estipuladas no Acordo por parte “de órgãos diferentes daqueles do governo central”. Desse modo, cabe aos membros da OMC assegurar que “entidades não governamentais” cumpram com as previsões do Acordo.

No único caso em que o Artigo 13 foi avaliado pelo OSC (DS18), o painel entendeu (WT/DS18/R) que as medidas adotadas pelo governo da Tasmânia, entidade distinta do governo central, exigiam a responsabilidade da Austrália, como membro, de assegurar o cumprimento das regras do Acordo.

Apesar de não se tratar de uma “entidade não governamental”, para o painel, os “membros são plenamente responsáveis, sob o Acordo [SPS], pela observância de todas as obrigações aqui estabelecidas”; e os “membros devem formular e implementar medidas e mecanismos positivos em apoio à observância das provisões deste Acordo por parte de órgãos diferentes daqueles do governo central” (conforme destacado no parágrafo 7.13 do documento WT/DS18/R).

Na visão de vários membros (G/SPS/GEN/932/Rev.1), as principais entidades que impõem padrões privados são varejistas – supermercados e hipermercados como Marks and Spencer”s, Carrefour, Metro, Primus Labs, Tesco e Wal-Mart. Esses padrões contemplam várias condições/requisitos que extrapolam as medidas SPS, incluindo exigências ambientais e sociais.

Por serem criados por grupos externos ao governo, os padrões privados reforçam a tese de que o conceito deve envolver a expressão “entidade não governamental”. Na realidade, a discussão implícita é: os membros são responsáveis por fazer com que atores não governamentais que criam padrões e exigências, ora pautadas por regras, ora além destas, sigam os Acordos da OMC?

Quando o Artigo 13 usa a expressão “entidades não governamentais”, refere-se às diversas iniciativas de criação de padrões aplicados no comércio internacional que fogem ao escopo de atores estatais. Para citar apenas algumas: European Food Sustainable Consumption and Production (SCP) Round Table; Consumer Goods Forum; Better Cotton Initiative – BCI; 4C Association; Round Table on Responsible Soy Association; Roundtable on Sustainable Biomaterials – RSB; UTZ Certified; e BRC Global Standards – Food.

Uma busca realizada no Standards Map, do Centro Internacional do Comércio (ITC, sigla em inglês), sobre padrões relacionados a produtos agrícolas para o Brasil[4] aponta a existência de 55 padrões que tratam de comércio justo, biodiversidade, boas práticas agrícolas, produção orgânica, questões sociais, entre inúmeras outras agendas.

O caso dos biocombustíveis na UE é um paradigma para essa discussão. De acordo com a Diretiva 2008/28/CE, que estabelece padrões de sustentabilidade, um exportador brasileiro que pretenda vender etanol para a UE precisa comprovar que cumpre os requisitos ambientais, o que pode ser feito pela celebração de um acordo bilateral entre UE e Brasil. No entanto, a UE reconhece a equivalência entre os esquemas voluntários e seus requisitos em, ao menos, 13 diferentes regimes:

i) International Sustainability and Carbon Certification (ISCC)

ii) Bonsucro EU

iii) Round Table on Responsible Soy EU RED (RTRS EU RED)

iv) Roundtable of Sustainable Biofuels EU RED (RSB EU RED)

v) Biomass Biofuels voluntary scheme (2BSvs)

vi) Abengoa RED Bioenergy Sustainability Assurance (RBSA)

vii) Greenergy Brazilian Bioethanol verification programme (Greenergy)

viii) Ensus voluntary scheme under RED for Ensus bioethanol production

ix) Red Tractor Farm Assurance Combinable Crops & Sugar Beet Scheme (Red Tractor)

x) Scottish Quality Farm Assured Combinable Crops (SQC) scheme

xi) Red Cert

xii) NTA 8080

xiii) Roundtable on Sustainable Palm Oil RED (RSPO RED)

O fato de a discussão sobre padrões privados ter emergido no âmbito específico do Comitê do Acordo SPS não impede uma análise mais abrangente do tema. O Comitê de Comércio e Meio Ambiente, por exemplo, discute selos ambientais e requisitos relacionados à economia verde. O Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT, sigla em inglês) acolhe regulamentos técnicos criados pelos membros e padrões estabelecidos por organizações, com o intuito de atingir um dos objetivos do Artigo 2.2 (proteção do meio ambiente).

Em sintonia com o Artigo 13 do Acordo SPS, o Artigo 3 do Acordo TBT determina que os membros devem adotar medidas razoáveis para que “entidades não governamentais dentro de seus territórios” cumpram as regras do Acordo; e o Artigo 4.1, que trata da preparação, adoção e aplicação de padrões, estabelece que “órgãos de padronização não governamentais dentro de seus territórios” devem seguir o Código de Boas Práticas para a Preparação, Adoção e Aplicação de Padrões (Anexo 3).

É preciso ponderar se os padrões, mesmo criados por atores não estatais, ou com o apoio ou suporte de órgãos do governo, devem seguir as regras da OMC, que expressamente vinculam os países membros.

As regras existentes ou criadas por um membro vinculam seus atores privados, tais como indústrias, bancos, sociedades sem fins lucrativos e organizações não governamentais. Dessa forma, o fato de os Acordos SPS e TBT tratarem de órgãos não governamentais e exigirem que os membros adotem medidas para que cumpram as regras dos Acordos abre um enorme espaço para questionamentos de padrões que criem barreiras. Isso é especialmente pertinente quando são incorporados à discussão os conceitos de justificativas científicas, razoabilidade e não criação de restrições arbitrárias ou injustificáveis ao comércio.

Parece evidente o potencial de certos padrões para a criação de barreiras ao comércio ou, ao menos, custos que podem afetar o comércio de certos países – e sua adequação ou não às regras da OMC é tema que vai muito além de um conceito sobre padrões privados-SPS. A resistência de certos membros em aprimorar essa análise pode ser ultrapassada por futuros painéis, e a velocidade com que os padrões são criados e adotados sinaliza que a OMC acabará avaliando o tema por meio do OSC – e não mediante decisões dos Comitês de SPS ou TBT.

Publicado no site da ICTSD – International Centre for Trade and Susteinable Development

Fonte:
http://www.ictsd.org/bridges-news/pontes/news/a-encruzilhada-dos-padr%C3%B5es-privados-no-acordo-sps

 

Compartilhe: