Operação S.O.S.

Espera-se em 2015 um acordo que determine não só quem faz o que no nível supranacional como permita costurar a colcha de retalhos de regulações nacionais e subnacionais em funcionamento mundo afora.

As emissões de carbono estão associadas ao maior problema ambiental do planeta: a mudança climática.” Por mais evidente que possa soar, a afirmação do coordenador do Núcleo de Pesquisa em Política e Regulação de Emissões de Carbono (Nupprec), da USP, Sérgio Pacca, posiciona sob a perspectiva correta a relevância do debate que será aberto no mês que vem em Lima.

A capital peruana sediará a 20ª Conferência das Partes (COP 20) das Nações Unidas sobre mudança do clima, última grande parada no processo de construção do acordo global que deverá suceder o Protocolo de Kyoto [1] como principal guarda-chuva para a coordenação dos esforços voltados para o controle do efeito estufa. Se tudo caminhar bem, esse acordo será lançado na COP de Paris em dezembro de 2015.

[1] Embora tenha sido criado para vigorar entre 2008 e 2012, o mandato de Kyoto foi prolongado até 2020 na COP 18, realizada em 2012 em Doha

O objetivo é cortar as emissões de gases do efeito estufa (GEEs) o suficiente para manter o aumento da temperatura dentro de 2 graus, que é o cenário mais otimista traçado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) [2]. Espera-se um acordo que determine não só quem faz o que no nível supranacional, como permita costurar a colcha de retalhos de regulações nacionais e subnacionais em funcionamento mundo afora. “Todas as formas de reduzir as emissões passam por regulação. O importante é haver vontade política”, diz Pacca.

[2] O IPCC foi estabelecido em 1988 pela ONU e pela Organização Meteorológica Mundial para consolidar o conhecimento científico sobre a mudança climática e suas causas

Isso não é fácil de fazer. É o que explica o diretor do Programa de Economia Ambiental de Harvard, Robert Stavins. “O novo acordo vai pôr todos os países sob um quadro legal a ser implementado a partir de 2020”, diz. É justamente essa construção que torna a reunião de Lima fundamental. “A conferência de Lima será crucial”, prossegue.

O diretor do departamento de Meio Ambiente do Itamaraty, ministro Raphael Azeredo, reitera a relevância desse momento. Segundo ele, na COP de Lima serão tomadas “duas decisões importantes”. A primeira é o texto negociador, que constituirá o “esqueleto” do novo acordo. A outra é um alinhamento dos compromissos que cada país levará à mesa de negociações, os chamados Intended Nationally Determined Contributions (Contribuições Nacionalmente Determinadas Pretendidas, em tradução literal) [3]. A elaboração desses documentos que consolidam as propostas de reduções de cada país participante foi acordada na COP 19 – realizada no ano passado, em Varsóvia – e deverão ser entregues no primeiro trimestre do ano que vem.

[3] A consultoria Ecofys elaborou um paper bastante didático sobre o conceito

O que esses documentos devem conter ainda não está 100% claro. “Em Lima, teremos de definir com maior precisão quais informações deverão constar das contribuições [nacionalmente determinadas], para que elas possam ser apresentadas com a antecedência necessária”, diz Azeredo. A posição do Brasil é de que os documentos devem indicar as ações que cada país está disposto a fazer voluntariamente, bem como, no caso de países em desenvolvimento, as necessidades de financiamento e transferência de tecnologia.

METAS AMBICIOSAS

Não bastasse a dificuldade em encontrar uma solução para o pós-2020, Lima também tratará do momento atual de Kyoto na tentativa de aumentar as ambições nos compromissos já assumidos. De acordo com a edição mais recente do The Emissions Gap Report do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, ainda seria preciso reduzir as emissões anuais de gás carbônico entre 8 e 12 gigatoneladas [4] para que se mantenha uma trajetória compatível com o limite de 2 graus. “Tem uma lacuna entre o que a ciência diz que a gente precisa fazer para limitar o aquecimento global e o que os países se comprometeram a fazer até hoje”, diz o secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl.

[4] Uma gigatonelada equivale a 1 bilhão de toneladas

E o quadro é cada vez mais urgente. “A mudança climática já está ocorrendo e temos fenômenos muito graves. A gente observa que a regulação não está vindo com a devida rapidez”, pontua Antônio Pinheiro Pedro, do escritório Pinheiro Pedro Advogados, especializado em direito ambiental. Nessa mesma linha, Pacca afirma: “A preocupação dos cientistas com o clima tem aumentado, como mostra o 5º Relatório do IPCC. O momento para tomar uma atitude é agora”.

A indicação de que o acordo pós-2020 poderá ter força legal aplicável a todas as partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC) está sinalizada desde a COP 17, realizada em 2011 em Durban, como lembra o coordenador do programa de Política e Economia Ambiental do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (GVces), Guarany Osório. “O Protocolo de Kyoto [5] as lista metas obrigatórias de redução de emissões para um conjunto de países desenvolvidos e prevê estímulos para que os países em desenvolvimento promovam ações voluntárias visando o desenvolvimento sustentável. Hoje se discute qual será o papel de cada país no novo acordo. Busca-se calibrar qual será a responsabilidade de cada nação, levando em conta as respectivas capacidades, com o objetivo de se evitar o aumento de temperatura acima dos 2 graus”, explica.

[5] O Anexo B do Protocolo de Kyoto lista as obrigações assumidas pelos países desenvolvidos. O princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, determina que os países desenvolvidos tenham de fazer cortes maiores nas emissões, por terem emitido mais ao longo da História

Tudo leva a crer que países em desenvolvimento com economias mais pujantes – em especial China, Índia e Brasil – terão de assumir pela primeira vez compromissos mais incisivos e obrigatórios.

O gerente-geral da Agroicone, Rodrigo Lima, também está sentindo o vento soprar nessa direção. “Não é mais razoável que os países desenvolvidos assumam sozinhos a liderança sem que países importantes como o Brasil ou a China entrem na história. Há quem ache que o Brasil só terá compromissos voluntários, mas, ao observar como as discussões têm caminhado, pode ser que a gente ‘morra’ com esse argumento”, especula.

Não quer dizer que o Brasil terá de assumir o mesmo grau de responsabilidade de um grande emissor histórico como os Estados Unidos. Este será justamente um dos pontos das negociações em Lima. “Para que o acordo em Paris seja equilibrado, deve-se levar em conta a responsabilidade histórica, dadas as emissões de cada país desde a Revolução Industrial”, argumenta o secretário de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente, Carlos Klink.

ESTRATÉGIAS

Diante desse novo contexto surge a questão inevitável: qual é, afinal, a melhor maneira de segurar esse touro pelos chifres?

Estratégias de comando e controle [6] são úteis em diversos contextos, mas no caso de redução de emissões deve haver uma combinação com instrumentos econômicos. Soluções decorrentes de uma Convenção internacional devem lidar com a soberania de cada país, não é possível dar um comando do qual não haverá o controle.” O problema, segundo ele, é de escala. Não estamos falando de algo pontual que possa ser como, por exemplo, aconteceu no caso do banimento do CFC [7] pelo Protocolo de Montreal [8]. “Banir uma substância [o CFC] que tinha uma escala pequena é uma coisa. No caso do carbono, você tem uma escala gigantesca que precisa ter instrumentos que induzam a transição para uma economia de baixo carbono”, compara

[6] Emprestado do vocabulário militar, comando e controle refere-se a estratégias em que o Estado usa poder coercitivo para garantir adesão aos regulamentos[7] Clorofluorcarbono (CFC) é uma classe de substâncias que era muito usada na fabricação de aerossóis e em refrigeradores. Acabou banido por ter efeitos negativos na camada de ozônio.[8] Em vigor desde 1989, o Protocolo de Montreal propõe a substituição de várias substâncias que afetam negativamente a camada de ozônio

Para Renato Soares Armelin, coordenador do programa de Sustentabilidade Global do GVces, tentar resolver pela linha do comando e controle também custaria caro. “Seria necessário um instrumento de fiscalização grande e custoso”, diz.

Sem contar que essa virada exige a adesão dos atores econômicos. Algo que pode ser obtido mais facilmente tornando o carbono visível nos balanços. Se o direito de emitir – sem custos na maioria dos países – passar a ter um preço, as empresas logo vão começar a investir em soluções menos carbono intensivas. “A precificação dá sinais. Quando você aumenta o preço de uma coisa, deixa a outra mais atraente”, resume Osório.

TRIBUTO VS. MERCADO

Talvez a tributação seja a via mais direta para que os governos precifiquem o carbono. Mas nem todos estão convencidos desse caminho. “Uma taxa poderia dar um retorno mais imediato, mas assegurar, por meio da taxação, uma redução na escala necessária dependeria muito de como esse recurso seria usado”, aponta Rittl, acrescentando que dificilmente estratégias baseadas em tributação poderão assumir caráter internacional. “Acho muito difícil o uso de um instrumento único e transfronteiriço para a taxação do carbono”, diz.

Armelin lembra que não adiantaria nada os governos taxarem as emissões e, ao mesmo tempo, adotarem medidas que estimulam seu aumento – como a redução do IPI da indústria automobilística determinada pelo governo brasileiro para tentar blindar a economia depois do estouro da crise global em 2008. “Tem de ter sinergia nas ações”, resume.

De qualquer modo, o uso da tributação como instrumento para conter as emissões tem avançado. No final de setembro, o Chile se tornou o primeiro país sul-americano a taxar as emissões – termelétricas com capacidade superior a 50 megawatts terão de pagar US$ 5 para cada tonelada de gás carbônico que despejarem na atmosfera (mais em especial sobre tributação verde)

A outra via para precificar o carbono seriam os mecanismos cap and trade [9]. Em tese, os mercados teriam de atuar naquilo que fazem melhor: otimizar custos. “Os mercados são a forma mais eficiente de fazer isso”, defende Jeff Swartz, diretor da International Emissions Trading Association (Ieta).

[9] Instrumento que permite aos governos criar tetos para as emissões das empresas; as que emitirem abaixo da meta podem vender o saldo no mercado

É uma questão de flexibilidade. Enquanto os impostos são um tanto engessados – dependendo da alíquota pode ficar mais barato pagar do que reduzir as emissões –, os mercados têm mais liberdade para ajustar seus preços. “Os mercados sempre vão encontrar o preço certo para gerar os investimentos necessários”, complementa o diretor da Ieta.

Ou, como explica Armelin, o mercado permite que indústrias que não tenham tanta facilidade para reduzir as emissões comprem créditos em outro canto. “Isso reduz o custo global. O mercado tem essa propriedade.”

Há também os mais céticos em relação ao papel do mercado. Em 2009, a ativista americana Annie Leonard lançou – como parte do projeto The Story of Stuff (A História das Coisas) – um vídeo chamado The Story of Cap and Trade , no qual critica o fato de que, ao converter as reduções em créditos negociáveis, os mesmíssimos grupos econômicos que ajudaram a criar o problema acabam sendo premiados. A bióloga Jutta Kill é outra a engrossar esse coro. No livro Economic Valuation of Nature , desanca esse tipo de mecanismo ao apontar o risco de legitimar projetos altamente danosos ao meio ambiente – bastaria comprar o número certo de créditos. Além disso, Jutta diz que esses créditos não passam de uma “commodity imaginária” com validade bastante duvidosa.

No entanto, para Swartz o mecanismo tem se mostrado bem-sucedido nos países onde foi adotado. Segundo ele, a plataforma de negociação de créditos de carbono instituída pela União Europeia – o EU Emissions Trading System – tem sido uma ferramenta importante para que os países do bloco atinjam a meta de cortar 20% das emissões até 2020.“As emissões europeias já caíram 17%. A UE está tão confiante no sistema que deve avançar para 40% até 2030”, comemora. (Esses dados são contestados por um relatório do banco suíço UBS, segundo o qual o mecanismo europeu não poderá funcionar sem que as regras sejam alteradas, veja aqui)

Ainda de acordo com o entrevistado, a China também está dando um passo adiante. No âmbito subnacional, o país asiático já conta com pelos menos sete plataformas de negociação e estuda costurá-las em um sistema nacional a partir de 2016.

A Ieta tem esperanças de que um dos resultados do processo que será iniciado em Lima e finalizado em Paris seja um acordo que permita a globalização dos mercados de carbono. “Para isso, um país teria de ser capaz de transferir unidades de carbono por meio de um registro eletrônico mundial para outro país. Dessa forma, poderia aproveitar oportunidades menos custosas para reduzir suas emissões, sem ficar restrito aos limites geográficos”, diz o diretor da entidade.

TREINO É TREINO

No Brasil ainda não há uma experiência similar. Embora a Lei nº 12.187/2009 (que estabelece a Política Nacional sobre Mudança do Clima) inclua a criação de um instrumento de mercado do tipo, a iniciativa nunca saiu do papel. “Depende do poder público. Enquanto não houver uma legislação que imponha limites [às emissões] e especifique quais setores precisam reduzir, não haverá mercado”, reconhece Armelin. Não quer dizer que as empresas brasileiras estejam desinteressadas.

Entre março e agosto, a plataforma Empresas Pelo Clima (EPC) iniciou um exercício simulado envolvendo um grupo de 20 participantes. A ideia era promover um aprendizado a respeito de como funcionam os mercados e seu potencial como instrumento de mitigação. Segundo Armelin – que acompanhou a iniciativa desde a sua concepção até a execução – o desempenho dos participantes foi tímido. “Elas [as empresas participantes] ainda precisam aprender a como usar as operações financeiras para reduzir custos”, explica.

Criar um mercado desse tipo poderia ser uma forma de o Brasil dar um passo além em sua estratégia. Até agora, o País tem cortado as emissões com considerável sucesso por meio do combate ao desmatamento. Mesmo depois de um aumento de quase 29%, o desmatamento da Amazônia encerrou 2013 em 5.891 quilômetros quadrados, praticamente um quinto em relação ao pico registrado em 2004, quando foram deflorestados 27.772 quilômetros quadrados.

Segundo Juliano Assunção, diretor da Climate Policy Initiative do Brasil, esse sucesso se deve à melhora das ações de comando e controle permitidas pelo uso de imagens geradas por satélites. Mas esse ganho está se esgotando. “O sistema é bastante efetivo para lidar com desmatamentos em larga escala, só que, hoje, 70% dos novos desmatamentos são em áreas inferiores a 25 hectares. A natureza do problema mudou bastante”, comenta.

O sucesso na redução do desmatamento, aliás, pode se tornar uma armadilha para o País nessa nova rodada de negociações. À medida que o desmatamento seja controlado, os setores agropecuário e de energia passam a representar uma fatia maior das emissões brasileiras. “O Brasil acha que está protegido pelo princípio das metas diferenciadas e pela redução de emissões que já conseguiu ao diminuir o desmatamento. Mas em um cenário em que tenhamos metas para outros setores, nossa política atual perde musculatura”, alerta Lima, do Agroicone.

http://www.pagina22.com.br/index.php/2014/10/operacao-s-o-s/

Fonte: Revista Caderno 22, novembro/2014, por Fabio Rodrigues

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